sábado, março 17, 2012

Eva Blay é entrevistada pela Folha de São Paulo sobre governo da Presidenta Dilma e possíveis mudanças de paradígmas.


Socióloga, professora da USP e histórica militante feminista, foi eleita suplente de Fernando Henrique Cardoso para o Senado nos anos 1990 tornando-se em 1993, senadora pelo PSDB, quando FHC foi nomeado pelo então Presidente da República Itamar Franco para compor o quadro de ministro.
Como senadora Blay apresentou projeto descriminalizando o aborto, enfrentando a ira de religiosos. Numa ocasião ela falou: – “Diziam até que eu era representante do diabo.” Para ela, as igrejas resistem ao tema por razões políticas. E acrescenta: "Essas igrejas preferem a morte das mulheres, uma forma de punir a sexualidade feminina". Ela também tece comentários elogiosos à Presidenta Dilma por nomear a Ministra Eleonora Menicucci para a Secretaria de Políticas para as Mulheres e afirma que a nomeação tem uma importância muito grande ao afirmar categoricamente: “a nova ministra significa um passo à frente”. Enfim, é taxativa ao expor sua opinião os valores patriarcais ainda vigente e sobre a violência contra as mulheres: “Só vamos superar esse problema quando, juntamente com os homens, mudarmos os valores patriarcais ainda em vigor no país. Vale repetir que ninguém é dono de ninguém e quem ama não mata”.
Segue abaixo a entrevista na íntegra:
Folha – Qual sua opinião sobre a comissão do Senado que sugeriu flexibilizar a legislação sobre o aborto?
Eva Blay – Achei muito importante a iniciativa do Senado de criar uma comissão de juristas para tratar de várias questões, inclusive da interrupção da gravidez. As propostas são sensíveis e respeitam os direitos das mulheres.
Folha – Países como Portugal e Itália, onde a religião é forte, legalizaram o aborto. Por que esse tema é tão difícil no Brasil?
Eva Blay – A resistência da parte de algumas igrejas tem no fundo um teor político. Isto é, intervém sobre o voto eleitoral que elas procuram conduzir. Essas igrejas preferem a morte das mulheres, uma forma de punir a sexualidade feminina. Curioso que nada é dito sobre os homens, que, aliás, são tão responsáveis quanto as mulheres pela gravidez.
Folha – Como avalia o governo Dilma?
Eva Blay – Eleger uma mulher no Brasil para a Presidência foi um grande passo. Mas não bastaria apenas ser mulher. Dilma está fazendo um excelente governo no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. Nomeou mulheres competentes para cargos ministeriais importantes, com isso traçou um novo paradigma no processo de igualdade de oportunidades para homens e mulheres.
Folha – A nomeação da ministra Eleonora Menicucci gerou reações entre os evangélicos.
Eva Blay – Nomeá-la para a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres foi excelente. Eleonora reúne competência profissional, visão feminista, atestada em suas obras na universidade e nos movimentos sociais. A reação conservadora a Eleonora revela que ela significa um passo à frente.
Folha – Onde houve mais avanços nos direitos das mulheres?
Eva Blay – Avançamos muito, com ou sem a ajuda dos partidos políticos. Nosso maior problema ainda é a violência contra a mulher de todas as idades.Só vamos superar esse problema quando, juntamente com os homens, mudarmos os valores patriarcais ainda em vigor no país. Vale repetir que ninguém é dono de ninguém e quem ama não mata.
Folha – Deveria vigorar uma lei punindo o empregador que paga menos à mulher que exerce a mesma função que homem?
Eva Blay – Punir é importante. Não se trata de lei, mas de acordar um princípio.

COMENTÁRIO




Aproveito o mote dessa entrevista para postar aqui uma música do famosíssimo compositor Noel Rosa que nas suas composições captava com clareza o cotidiano de sua época e daí inseriu em algumas de suas letras uma crítica social em tom sagaz , usando de sutileza e espirituosidade para falar sobre o direito da mulher ao trabalho e ao voto.
É que no tempo que ele compôs seu repertório (1929 a 1937 - data da sua morte) as mulheres pobres já trabalhavam na industria fabril como operárias, diga-se de passagem, em condições sub-humana.
Apesar de que, em 1919 o governo brasileiro ao ter enviado uma mulher para participar da Reunião do Conselho Feminino da OIT -  Organização Internacional do Trabalho, subscreveu o que foi aprovado ao final daquela reunião, ou seja, assumiu o compromisso de adotar o princípio de salário igual, indistintamente, direito esse que não conseguiu vingar - ao que se tenha conhecimento - pelo menos, aqui no Brasil, até hoje). Também, em 1934, as ativistas sufragistas haviam conquistado o direito ao voto, isso, depois de muita luta com as forças políticas e grande parte da sociedade civil extremamente conservadoras.

Além do mais, foi por aí, em 1936, dois anos depois de Getúlio Vargas promulgar por decreto nº 21.076 o novo código eleitoral que garantia às mulheres brasileira o direito ao voto que Noel lança a música abaixo cujo título é:

Você Vai Se Quiser
Autoria: Noel Rosa


Você vai se quiser
Pois a mulher
Não se deve obrigar
A trabalhar
Mas não vá dizer depois
Que você não tem vestido
E o jantar não dá pra dois.
Todo cargo masculino
Seja grande ou pequenino
Hoje em dia é pra mulher
E por causa dos palhaços
Ela esquece que tem braços
Nem trabalhar ela quer.
Os direitos são iguais
Mas, até nos tribunais
A mulher faz o que quer
Cada qual que cave o seu
Pois o homem já nasceu
Dando a costela a mulher!


A letra é um reflexo bem explícito do tempo em que foi feita. Demonstra bem, como numa sociedade machista causava muito temor aos homens essa evolução do papel da mulher como cidadã, mesmo que, ainda naqueletempo, fosse essa tentativa de cidadania bem restrita.
A idéia em vigor, na época seria: ser o trabalho "fora do lar", algo secundário na vida das mulheres. Isso porque, o papel de provedor era dos homens. No entanto, como bem demonstra a narrativa, existia uma ambiguidade dos tais provedores que eram contra a mulher ingressar no mercado de trabalho.
Acontece que nem sempre era possível para esses machistas de meia tijela cumprir com as despesas do orçamento doméstico e suprir com o essencial como se pode bem observar nos versos seguintes : "Mas não vá dizer depois / que você não tem vestido / e o jantar não dá pra dois(...)".
Então, a mulher que já contribuia exaustivamente com o orçamento doméstico lavando, passando cozinhando, costurando a roupa da família, cuidando da filharada e da casa, quando tinha que trabalhar fora pra complementar as despesas familiares que o companheiro não conseguia dar conta sozinho cumpria com uma Dupla Jornada Super-Exaustiva.
Mesmo assim, quando isso acontecia o homem continuava no bem-bom, ou seja, não passava a colaborar em nada nas tarefas dentro de casa. Com isso, era a mulher obrigada a cumprir com eessa dupla jornada inevitavelmente e ai dela se reclamasse, pois vinha logo a fatídica frase que é título dessa música aqui mostrada - "Você vai se quiser..." . O caso é que as condições laborativas da mulher que trabalhava fora de casa eram exaustivas demais, já que cumpriam com uma carga horária puxadíssima de 12 a mais horas por dia, e em situações as mais penosas que possamos imaginar.
Então, ao regressar a sua residência se elas não cumprisse com todas as tarefas de dona de casa que lhes eram atribuidas como ocupação feminina inata vinha de pronto as reclamações exigências e repreensões de tudo quanto era lado. Portanto, sem ninguém a seu favor, sem leis trabalhistas que a protegessem, e o pior de tudo, precisando complementar a renda familiar  pois os salários pagos as mulheres eram ninharias)  continuavam na mesma labuta do mesmo jeito de sempre - trabalhando ou não.
E o que era pior, sofriam por parte do cara metade - que dava ao luxo de se abster - numa boa -de qualquer tarefa doméstica - todo tipo de reclamação e críticas pelo trabalho fora do lar acusando-as de tomar o lugar do homem e ainda por cima deixar de cumprir com o sagrado dever de dona de casa perfeita / esposa dedicada e mãe devotada.
Podemos comprovar essa situação de subordinação dobrada da mão de obra da mulher no espaço privado, na medida que tinha outra atividade empregatícia fora no mulher reparando bem na mensagem categórica passada pela letra dessa música: "Todo cargo feminino / Seja grande ou pequenino / hoje em dia é pra mulher / E por causa dos palhaços / Ela esquece que tem braços / nem trabalhar ela quer(...)"
É muito fácil detectar que a música, na sua essência, refletia bem o que se passava no inconciente social - ou melhor dizendo - no imaginário coletivo brasileiro daquela época: era a mulher em todos os sentidos inferior aos homens.
E, nesse samba, Noel Rosa apresenta a ambivalência e as contradições próprias de seu tempo. Um período em movimento de mudança, mas pressionado por todas as forças do patriarcado e por um machismo exacerbado que penalizava as mulheres de todas as maneiras.
Daí, não podia ser diferente ver um compositor excelente passar uma mensagem claramente misógina - como era o pensamento da época - que mesmo trabalhando fora pra complementar a receita financeira doméstica ela não podia se omitir em  realizar também, as funções de "dona de casa" que lhe era peculiar. Porém, ao deixar seu legado musical, Noel deu panos às mangas para a possibilidade de outras leituras críticas não só pelas feministas do seu tempo como para qualquer pessoa que agora utilize-se da intersecção entre trabalho e relações de gênero.
Outrossim, o verso final aponta dois pensamentos comuns na época:
1º) - o impacto na sociedade com a saída da mulher do espaço privado para atuar produtivamente e  a luta das sufragistas ( como eram nomeadas as feministas que não só lutavam pelo direito da mulher votar, mas, também, conquistar direitos iguais no espaço públicos, ter acesso a educação, ao trabalho igual com salário igual e muito mais como fica implícito nos versos do compositor que demonstrava a revolta da maioria com as mudanças que se avizinhavam na medida certa dos direitos que iam sendo adquiridos a todo pulso: "Os direitos são iguais / Mas até nos tribunais / a mulher faz o que quer(...) ".
2º) Diante do contexto daquela época, não podemos deixar de ter em vista, o fato da mulher, naquele tempo, ser considerada inferior aos homens. Tanto é que, era comum defini-la como Sexo Frágil, Segundo Sexo e outros termos coincidentes. Na última estrofe, esse conceito sócio/cultural está bem explicitado como se pode ler no desabafo desesperado: (...)/ "Cada qual que cave o seu / Pois o homem já nasceu / Dando a costela a mulher".