quarta-feira, fevereiro 23, 2011

A Musa Sem Máscara (A emancipação da mulher através da MPB depois da 2ª Onda Feminista - Déc.70/Séc. 20


VAI VALER A PENA TER AMANHECIDO



A partir deste instante vou me ater exclusivamente à revi­são musical histórica das canções relacionadas à sigla MPB. Partindo de meados dos anos 70, acrescentarei a ela, mais adiante, a nova onda da geração dos anos 80, o atual rock brasileiro.
À medida que o movimento feminista vai crescendo, a ima­gem da mulher na MPB — no mesmo diapasão — passa por transformações radicais. É como se uma parcela de homens confessasse sua "culpa e seu pecado", descobrindo, enfim, que todo ser humano é dual. E traz dentro de si porções igualitá­rias de caracteres que antes eram vistos separados em pessoas dos gêneros feminino e masculino. Em Super-homem — a can­ção, "por causa da mulher", Gil, entrevê o ocaso dos "super-homens" e, espero, das supermulheres, tão mencionadas e sem­pre em evidência, principalmente em campanhas políticas e nos corredores do poder público. Tipologia de "primeira-dama", que os machos fazem questão de preservar, repetindo o velho chavão: "Por trás de um grande homem há sempre uma gran­de mulher!”.


Super-homem – A Canção - 1978
Gilberto Gil

Um dia
Vivi a ilusão
De que ser homem bastaria
Que o mundo masculino
Tudo me daria
Do que eu quisesse ter.
Que nada
Minha porção mulher
Que até então se resguardara
É a porção melhor
Que trago em mim agora
E que me faz viver.
Quem dera
Pudesse todo o homem compreender
Oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu
Da primavera
E só por ela ser
Quem sabe
O super-homem venha
Nos restituir a glória Mudando como um Deus
O curso da história
Por causa da mulher.



Os homens conscientes descobrem que a mulher não está mais a fim de ser coitadinha. Ela quer mesmo é ser feliz. E já vive os desenlaces afetivos com dignidade, sem ficar, como an­tes, descompensada a se descabelar toda. Pode até, em seguida a qualquer separação, olhar sem constrangimento para o ex-amor, olho no olho:


Olhos nos Olhos - 1976
Chico Buarque

Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz
E passar bem
Quis morrer de ciúmes
Quase enlouqueci
Mas depois
Como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita
Podes crer
Olhos nos olhos
Quero ver o que você f az
Ao sentir que sem você
Eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porque
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez, precisar de mim
Cê sabe que a casa é sempre sua
Venha sim
Olhos nos olhos
Quero ver o que você diz
Quero ver como suporta
Me ver tão feliz.



Até que enfim vai começando a acontecer com a mulher brasileira o que conclamava, no início do século, a escritora Alexandra Kollontai no seu livro “A nova mulher e a moral sexual”: “Já é hora de ensinar a mulher a não considerar o amor como a única base de sua vida, e sim como uma etapa, como um meio de revelar o seu verdadeiro eu. É necessário que a mulher aprenda a sair dos conflitos do amor, não com as asas quebradas, e sim como saem os homens, com a alma fortalecida.”
Fato inolvidável!!! As novas canções interrogam-se também, sobre o motivo da prevaricação da mulher em meio à crise contínua dos casamentos, sintonizando a falência dessa instituição, ao menos nos moldes tradicionais. Começa, então, por parte de uma geração de compositores politicamente correta, a se explicitar os motivos que induzem a mulher ao adultério. Nesse caso as letras externavam, naturalmente, sem mais nem menos, opiniões contundentes sobre fidelidade conjugal imposta apenas e unicamente à mulher.
Cabe lembrar aqui que, anteriormente, pelo contrato matrimonial apesar do adultério – tanto da mulher como do homem – ser criminalizado no nosso código civil como ato contra a moral e os bons costumes, isso só valia para a esposa adúltera pois a penalidade ao cônjuge era letra morta vigente só no papel. tanto nas letras das canções feitas anteriormente, quanto na sociedade moldada numa estrutura hierárquica de gênero em que o elemento central da relação conjugal estava assentada na manutenção do direito do homem sobre o corpo da mulher atos violentos eram comum de suceder contra a mulher que prevaricasse. Ficava implícito que no relacionamento extraconjugal só a mulher era julgada e punida e até assassinada pelo companheiro com o beneplácito da sociedade vigente ao usar a justificativa grotesca da “legítima defesa da honra, passo que aos homens não era aplicada nenhuma pena, muito pelo contrário, ficavam liberados para buscar abertamente a sua satisfação sexual onde bem lhe aprouvesse podendo transar a vontade fora de casa – e o que é da maior desfaçatez – dentro das próprias paredes do sacrossanto lar.

ATENÇÃO:
Vale saber que, perante a lei, as mulheres só se livraram do estigma dessa punição unilateral, em 2005, quando o adultério deixou de ser considerado crime.
Observemos, pois, a letra de Gonzaguinha gravada por ele em 1980.


Ponto de Interrogação – 1980
Gonzaguinha

Por acaso algum dia você se importou
Em saber se ela tinha vontade ou não
E se tinha e transou,você tem a certeza
De que foi uma coisa maior para dois
Você leu em seu rosto o gosto
O fogo,o gozo da festa
E deixou que ela visse em você
Toda a dor do infinito prazer
E se ela deseja e você não deseja
Você nega,alega cansaço ou vira de lado
Ou se deixa levar na rotina
Tal qual um menino tão só no antigo banheiro
Folheando as revistas,comendo as figuras
As cores das fotos te dando a completa emoção
São perguntas tão tolas de uma pessoa
Não ligue,não ouça
São pontos de interrogação
E depois desses anos no escuro do quarto
Quem te diz que não é só o vicio da obrigação
Pois com a outra você faz de tudo
Lembrando daquela tão santa
Que é dona do teu coração
Eu preciso é ter consciência
Do que eu represento nesse exato momento
No exato instante na cama
Na lama,na grama
Em que eu tenho uma vida inteira nas mãos...


Forma-se uma cadeia comunicativa onde o compositor exibe ao público a nova imagem da mulher “Maria”, totalmente diversa da tradicional imagem cristã. Mostra a mulher do presente, com posição ativa na sociedade. Denunciando, desagravando, reivindicando melhorias na qualidade de vida e na redefinição das leis (feitas pelos juristas, invariavelmente homens, para que elas as cumprissem a risca). Maria que, segue daí em diante, lutando pela igualdade de direitos e deveres independente do sexo, raça, etnia classe, orientação sexual, credoreligioso ou ideologia política:


Maria, Maria – 1978
Milton NascimentO / Fernando Brant

Maria, Maria
É um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece
Viver e amar
Como outra qualquer
Do planeta
Maria, Maria
É o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que rí
Quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta
Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida....



Não foi por acaso que a música “Começar de novo”, de Ivan Lins e Vitor Martins, lançada em 1979, virou o hino das mulheres em movimento. Observe a letra e ve­ja, na sua verbalização simbólica, a nova filosofia de vida de uma grande quantidade de mulheres:

Começar de novo - 1979
Ivan Lins / Vitor Martins

Começar de novo
E contar comigo
Vai valer a pena
Ter amanhecido
Ter me rebelado
Ter me debatido
Ter me machucado
Ter sobrevivido
Ter virado a mesa
Ter me conhecido
Ter virado o barco
Ter me socorrido
Começar de novo
E contar comigo
Vai valer a pena
Ter amanhecido
Sem as tuas garras
Sempre tão seguras
Sem o teu fantasma
Sem tua moldura
Sem tuas escoras
Sem o teu domínio
Sem tuas esporas
Sem o teu fascínio
Começar de novo
E contar comigo
Vai valer a pena
Já ter te esquecido
Começar de novo...

Apesar de tudo, as artistas, como mulheres em geral bem-sucedidas (e as cantoras e compositoras em particular), rene­gavam veementemente o feminismo. É comprovado historica­mente que o dominado tende a aceitar e defender a cultura do dominador. Elas comungavam com a ojeriza dos machões quatrocentões à palavra e à pessoa feminista. Apesar de toda a hostilidade de uma parcela muito grande da sociedade, não se pode, negar o mérito do movimento aos avanços conquistados para nós mulheres no decorrer do século passado. Se a mulher hoje pode mostrar in­dependência e autonomia, foi graças à capacidade empreende­dora e à mentalidade do feminismo, subversiva ao padrão instituído do "eterno feminino". Foram as militantes feministas que mu­daram a ordem vigente e conquistaram para nós a condição de cidadãs, o reconhecimento da igualdade dos direitos e deveres na educação e no trabalho. Também o divórcio, as creches, as delegacias de mulheres e tantas outras coisas, foram conquis­tas do feminismo. Nos anos 80, embora acusadas inicialmente de sexistas, as militantes feministas insistiram em afirmar que "o privado também é político" e essa luta nos possibilitou a ob­tenção do gratificante domínio sobre o nosso próprio corpo.
Como conseqüência a todo esse esforço de mudança, rea­lizado pelo empenho conjunto e obstinado das feministas, mu­lheres militantes começaram a ocupar espaços públicos e se sobressaíram em todos os campos, inclusive na criação artística musical, até que, no pleito de 2010, uma mulher conquista a Presidência da República do Brasil, pelo voto direto da maioria do eleitorado brasileiro (homens e mulheres).
Em 1979, ressurge com força total e livre trân­sito nas gravadoras (ao menos aparentemente) inúmeras compositoras que, mesmo negando os avanços históricos da mu­lher, graças à luta das militantes feministas, começam a expor uma escrita própria. Revelando gradualmente uma mensagem peculiar, em que o erotismo feminino tem primazia e é transmitido de for­ma clara e explícita. Pela primeira vez, em 1981, a menstruação — tabu na linguagem falada — é mostrada naturalmente nu­ma música:


Cor de Rosa Choque – 1982
Rita Lee / Roberto de Carvalho

As duas faces de Eva
A bela e a fera
Um certo sorriso
de quem nada quer.

O sexo frágil
Não foge à luta
E nem só de cama
Vive a mulher.

Por isso não provoque
É cor-de-rosa-choque
Não provoque
É cor-de-rosa-choque.

Mulher é bicho esquisito
Todo mês sangra
Um sexto sentido
Maior que a razão.

Gata borralheira
Você é princesa
Dondoca é uma espécie
Em extinção.

Por isso não provoque
É cor-de-rosa-choque
Não, não, não provoque
É cor-de-rosa-choque.


Influenciados por essa renovação retórica e semântica do discurso feminino, muitos dos compositores da MPB passam, a partir da década de 80, a redefinir a mensagem enviada diretamente à mulher. Reconhecem nelas uma potencialidade infi­nita para enfrentar os desafios relativos ao novo modo de viver e uma capacidade corajosa de querer forjar novas caminhadas. Também explicitam o Infinito desejo de liberação do erotismo e da sexualidade latente das mulheres:

Infinito Desejo – 1978
Gonzaguinha

Ah! infinito delírio chamado desejo
Essa fome de afagos e beijos
Essa sede incessante de amor.
Ah! essa luta de corpos suados
Ardentes e apaixonados
Gemendo na ânsia
De tanto se dar.
Ah! de repente o tempo estanca
Na dor do prazer que explode
É a vida, é a vida, é a vida
E é bem mais
É esse teu corpo sorrindo
Espelho do meu no vulcão da alegria
Te amo, te quero meu bem
Não me deixes jamais.
Eu sinto a menina brotando
Da coisa linda, que é ser tão mulher
Ó santa madura inocência
O quanto foi bom e pra sempre será
E o que mais importa é manter essa chama
Até quando eu não mais puder
E a mim não me importa nem mesmo
Se Deus não quiser.


Demonstram eles, em diversas canções, saber que as mulheres estão mais "atrevidas", cheias de vida e batalhando finalmente pela própria felicidade:

Atrevida – 1980
Ivan Lins / Vitor Martins

Estou mais atrevida
Mordaz e ferina
Estou cheia de vida
Sagaz e ladina
Já não sou mais a mesma
Respiro outros ares
Navego outros mares
São tantos olhares
Convites sorrisos
Eu gosto, eu preciso, pois é...
Que ficou impossível não ver
Mudei de você
Por isso me esqueça
Virei a cabeça
Nas noites mal dormidas
Rezava seu nome
Olhava na janela
Chorava seu nome
Mexia em sua roupa
Gemia seu nome
Morria de sede
Subia as paredes
Me amava sozinha
Você não me vinha, pois é...
Que ficou impossível não ver
Mudei de você
Já não me inicia
Já não me arrepia
Estou mais atrevida
To cheia de vida
Você não me provoca
Nem quando me toca
Agora eu tenho é fome
De homem que seja feliz.


Especulam até sobre a queda do mito puritano da mulher frígida. Em decorrência das disposições sócio-culturais do momen­to, reconhecem a resposta orgástica da parceira quando transam, sem com isso lhe desabonar a imagem, como sempre foi comum, e alardeiam essa potencialidade como vitória das mulheres:


Vitoriosa – 1986
Ivan Lins / Vitor Martins


Quero sua risada mais gostosa
Esse seu jeito de achar
Que a vida pode ser maravilhosa.

Quero sua alegria escandalosa
Vitoriosa por não ter
Vergonha de aprender como se goza.

Quero toda sua pouca castidade
Quero toda sua louca liberdade
Quero toda essa vontade de passar
Dos seus limites e ir além.



Constatam que as mulheres não desejam ser mais "apenas uma mulher", como eles estavam acostumados a dizer. Elas já não se importam, nem se interessam obrigatoriamente, pelas coisas importantes ditas por eles. Querem é ir atrás da vida que deixaram lá fora, e nada mais poderá impedi-las. São mulheres e daí?... Ansiosas por conquistar a independência. Reconhecem essa nova postura delas e concluem em um novo discurso musical para uma nova mulher:


Mulher e Daí?... (Apenas mulher) – 1980

Gonzaguinha

E daí?...
Pouco importa se você se imporia
Ou se interessa ou não se interessa
É o fim de conversa
Eu volto pra vida
Que deixei lá fora, na rua.
E daí?...
Vou sentindo a demora
De ver o vulcão
Que o meu peito devora
Não teve resposta
A contraproposta
Da parte que é tua
Fui tua...
E dai?
É uma pena
Que a moça não seja
De cama e mesa
Um bicho, uma presa
Que depois de usada
Se guarda ou se joga
Na lata de lixo.
E daí?!
Eu sou uma mulher
Uma parte comum
De um jogo qualquer
Pra perder ou ganhar
Ou aquilo que for
Mas os dois com a mão na colher.
E daí?!
Digo a frase maldita
E pra mim pouco importa
Se você acredita.
Eu te amo e não temo este amor
Já vou indo levando esta dor.
Vou em paz
Pois não tenho a dor
de amar demais.
E dai?!...


Em meio a toda essa ebulição deslumbram-se ao constatar que o "vulcão" desativado no corpo da mulher, adormecido, milenarmente, explode e entra em erupção.


À Sombra De Um Vulcão – 1987
Fagner / Fausto Nilo


Nunca houve uma mulher como você
Em milhões de anos-luz de solidão
Minhas noites novamente são azuis
Minhas tardes são douradas de verão.
Você é meu paraíso
A pessoa que tanto preciso
Com loucura e paixão.
Eu rezo com o teu olhar
Eu gozo com a tua voz
Esse amor arrebenta com tudo
Parece até que o mundo
Não sobrevive sem nós.
Nunca houve uma mulher como você
Entre tantas que já tive em minhas mãos
Eu preciso acreditar que sou feliz
Mas persigo os teus mistérios como um cão.
E tudo parece tão claro
Tudo parece perfeito
Mas quando acordo me vejo
O espelho diz que não
Quem sonha contigo molha a cama
Quem te ama dorme à sombra de um vulcão.





segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Pesquisa diz que 5 mulheres apanham a cada 2 minutos

Jornal "O Estado de S. Paulo"



Pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo - São Paulo - em parceria com o Sesc projeta uma chocante estatística: a cada dois minutos, cinco mulheres são agredidas violentamente no Brasil. E já foi pior: há 10 anos, eram oito as mulheres espancadas no mesmo intervalo.
Realizada em 25 Estados, a pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado ouviu em agosto do ano passado 2.365 mulheres e 1.181 homens com mais de 15 anos. Aborda diversos temas e complementa estudo similar de 2001. Mas a parte que salta aos olhos é, novamente, a da violência doméstica.
"Os dados mostram que a violência contra a mulher não é um problema privado, de casal. É social e exige políticas públicas", diz Gustavo Venturi, professor da Universidade de São Paulo (USP) e supervisor da pesquisa.
Para chegar à estimativa de mais de duas mulheres agredidas por minuto, os pesquisadores partiram da amostra para fazer uma projeção nacional. Concluíram que 7,2 milhões de mulheres com mais de 15 anos já sofreram agressões - 1,3 milhão nos 12 meses que antecederam a pesquisa.
A pequena diminuição do número de mulheres agredidas entre 2001 e 2010 pode ser atribuída, em parte, à Lei Maria da Penha. "A lei é uma expressão da crescente consciência do problema da violência contra as mulheres", afirma Venturi.
Entre os pesquisados, 85% conhecem a lei e 80% aprovam a nova legislação. Mesmo entre os 11% que a criticam, a principal ressalva é ao fato de que a lei é insuficiente.

quinta-feira, fevereiro 03, 2011

A mulher negra e a branca nas marchinhas de carnaval

Esta postagem está - com alguma pequenas modificações que fiz, agora, no livro, de minha autoria: "A musa sem máscara - Imagem da mulher na música popular brasileira", editora Rosa dos Tempos e Distribuidora RECORD de Serviços de Imprensa S.A
Pretendo daqui por diante expandir mais a minha análise sobre a temática abaixo já que estou screvendo nova edição revisada, ampliada e atualizada.



Louras, morenas, mulatas quem dá mais?

Uma temática muito particular entra em voga nas compo­sições de marchinhas e sambas, principalmente nos anos 40: a disputa musical, instituída por compositores/letristas, na intenção de promover qual a musa mais admirada por seus dotes físicos ou suas qualificações femininas, no conceito co­letivo do imaginário social.
Um sem-número de letras foram escritas com a intenção de acirrar a concorrência feminina pelo lado racial. Perfila­vam, desse modo, quem seria a melhor e mais interessante mu­lher, a que mais estivesse apta a satisfazer o gosto dos homens. Procuravam conjugar o amor físico (calcado na sexualidade) e o amor espiritual. Imaginavam uma beleza ideal, que reu­nisse, em seu conjunto, sensações agradáveis capazes de agu­çar a atração e a sedução de todos os homens pela mulher de cor negra ou branca, loura, morena, ruiva ou mulata.
No Brasil, essa rivalidade entre mulheres de pele branca e cabelos louros e as de pele escura e cabelos pretos foi uma herança dos portugueses, solidificada e agravada por conta de séculos de escravidão.
Conforme observa o antropólogo e sociólogo pernambu­cano Gilberto Freyre no seu livro Casa grande e senzala, ao se reportar à miscibilidade* nacional nos tempos do domínio colonial, "nenhum povo colonizador dos modernos excedeu ou sequer se igualou nesse ponto aos portugueses(...) O lon­go contato com os sarracenos deixara idealizada, entre os por­tugueses, a figura da moura encantada - tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos, envolta em misticismo sexual. Em oposição à tal lenda, acima citada, mas sem nunca alcan­çar o mesmo prestígio, desenvolveu-se a da moura torta. Nes­ta, transparecem o ciúme e a inveja sexual da mulher loura contra a de cor, e o ódio religioso dos cristãos louros contra os infiéis de pele escura. Ódio que resultaria mais tarde, em toda a Europa, na idealização do tipo louro, identificado com personagens angelicais e divinos, em detrimento do moreno, identificado com anjos maus, decaídos, malvados e traidores. (...) Pode-se afirmar que a mulher morena tem sido a preferi­da dos portugueses para o amor, pelo menos para o amor fí­sico. A moda da mulher loura, limitada aliás às classes altas, tem sido antes a repercussão de influências exteriores do que a expressão de genuíno gosto nacional: 'branca para casar, mu­lata para f..., negra para trabalhar', ditado em que se sente ao lado do convencionalismo social da superioridade da mu­lher branca e da inferioridade da preta, a preferência sexual pela mulata."
As marchas e sambas expõem, então, descaradamente a persistência da discriminação racial que se agrava quando aliada ao gênero feminino. Constantemente puseram na ordem do dia a rivali­dade racial entre pretas, brancas, morenas e mulatas, de forma bem estereotipada, eviden­ciada principalmente na década de 30 e dando prosseguimento pelas décadas de 40 em diante. Isto como conseqüência da inter-relação musical dos compositores brancos e pretos. Juntos, eles exploraram ao máximo essa antiga “rivalidade fe­minina” ainda reinante e que não passa de uma construção sócio-cultural no Brasil daquele tempo que ainda trazia bem forte o ranço da sociedade escravocrata que durou em termos legais até 13 de maio de 1888 – se é que podemos considerar a farsa jurídica da abolição da escravatura ante a promulgação da Lei Áurea. A população negra continua, de fato, explorada e oprimida por décadas e décadas seguidas à frente, durante o século 20.
Musicalmente aconteceu apenas o fato de haverem exposto a miscigenação de forma preconceituosa e discriminadora, usando a mulher como veículo eternizador dessa situação de desnivelamento de raças.
Os homens conseguiam — ao menos aparentemente — se confraternizar no mesmo espaço artístico, medindo talen­tos, mas faziam da mulher bucha de canhão nas batalhas do preconceito racial, disfarçado pelo hedonismo exagerado dos concursos de beleza.
Instaura-se, então, um leilão musical onde quem era oferecida como brinde, a ser rematado no final, era a figura considerada com mais predicados fe­mininos, em versão loura ou morena, regateada pela lei misógina de um mer­cado ultra racista e super-machista onde as preferências demandada pela mulher branca como um “bem de consumo requintado” que o homem gostaria de possuir era explicitamente mencionada, mas em função da escassez de oferta a mulher negra passava a ser a mulher atraente e sedutora, opção calcada em conceitos culturais preconceituosos como a letra da música abaixo justifica sem nenhum constrangimento:


Se por acaso, o amor me agarrar
Quero uma loura pra namorar
Corpo bem-feito, magro perfeito
E o azul do céu no olhar
Quero também que saiba dançar
Que seja clara como o luar.
Se isto se der, posso dizer
Que amo uma mulher.
Mas, se uma loura eu não encontrar
Uma morena é o tom
Uma pequena, linda morena
Meu Deus que bom!
Uma morena é o ideal
Mas lourinha não era mal
Cabelo louro vale um tesouro
É um tipo fenomenal
Cabelos negros têm seu lugar
Pele morena convida a amar
Que vou fazer?
Ah, eu não sei
Como é que vai ser
Ai, as mulheres
Que desespero de amor
É a lourinha e a moreninha
Meu Deus que horror! (1)


A mulata, como não poderia deixar de ser, era figura im­prescindível dos pregões, com todos os qualificativos e predicados identi­ficadores da "feminilidade negra" a que ela deveria fazer jus:


Quem dá mais
Por uma mulata
Que é diplomada
Em matéria de samba
E de batucada,

Com as qualidades
De moça formosa,
Fiteira, vaidosa
E muito mentirosa? (2)


Inicia-se musicalmente um concurso macabro, onde a tor­cida é incentivada a eleger qual mulher deve receber "grau dez" para assumir o título de "rainha de cabeça aos pés". Qual delas seria a mais indicada, pelos atributos físicos, para proporcio­nar prazer à maior parte dos homens? Nesse tempo os con­cursos de beleza começam a chamar atenção, com divulgação maciça nos meios de comunicação. E com o incentivo que as revistas femininas, em plena proliferação, davam às suas lei­toras, designadas como "belo sexo". No cômputo geral das letras encontradas, incontestavelmente a vitória predominan­te é da morenidade:


A vitória há de ser tua
Tua... tua...
Moreninha prosa!
Lá no céu a própria lua
A lua... a lua
Não é mais formosa!
Rainha da cabeça aos pés
Morena eu te dou grau dez!(3)

As louras ficam em desvantagem, somente porque são con­sideradas coisa rara num país de mestiços. Muito lisonjeadas em relação às outras, são fortes concorrentes ao título de rai­nha de beleza, nos escrutínios realizados durante o período carnavalesco:


Lourinha, lourinha
Dos olhos caros de cristal
Desta vez, em vez da moreninha
Serás a rainha do meu carnaval
Loura boneca
Que vens de outra terra
Que vens da Inglaterra
Que vens de Paris
Quero te dar
O meu amor mais quente
Do que sol ardente
Deste meu país

Linda lourinha
Tens os olhos tão claros
Deste azul tão raro
Como o céu de anil,
Mas tuas faces
Vão ficar morenas
Como das pequenas
Deste meu Brasil. (4)

A mulata, já nesse tempo, leva vantagem pelo "rebola­do", definido como agente provocativo e aguçador do desejo sexual masculino:


Branca é branca
Preta é preta
Mas a mulata é a tal
(É a tal)

Quando ela passa
Todo mundo grita oba
Estou aí nessa marmita**
Quando ela bole
Com os seus quadris
Eu bato palma e peço bis
Ai, mulata cor de canela
Salve, salve, salve, salve
Salve ela! (5)

Em meio a todo esse fetichismo, cada mulher se sobres­sai como a melhor, a mais bela ou a "boa", conforme a cor de sua pele. Essa era a forma de adequá-las, dentro dos pre­ceitos básicos do mercado sexual, numa sociedade que come­ça a conviver com o consumismo resultante dos valores de compra e venda, instituídos pelo regime capitalista em plena ascensão no país.
Elas não passam de artigos expostos nas prateleiras, e sua finalidade é apenas, serem adquiridas para uso e desfrute masculino. Valem o quanto medem e pesam, incluindo-se no preço o design multicor das embalagens:


O tipo louro
Vale um tesouro
Mas perto do moreno
É "café pequeno"
Enquanto eu tiver
Olhos pra enxergar
Boca pra gritar
Hei de ter opinião
Não é qualquer mulher
Que consegue dominar
Meu coração
O tipo escuro
Não dá futuro
É capital parado
Que não rende juro
O tipo claro
É muito raro
Mas vende pouco
Porque custa caro.(6)


Um detalhe singular, relacionado à temática da miscibilidade, observa-se a partir de 1937 (durante a vigência do Es­tado Novo), quando Getúlio Vargas fechou o Congresso e instalou-se ditatorialmente no poder.
Nos caminhos percorridos pela nossa música popular verifica-se uma tendência, bem nos moldes retóricos da exaltação patriótica, de um "Brasil brasileiro/terra de samba e pandeiro".
Em 1939 é lançada a música Hino do carnaval brasileiro, integrando as mulheres em geral aos outros bens de produção genuinamente nacionais. A mulher brasileira é elogiada entre as riquezas e belezas territoriais emanadas de um ecossistema onde a vegetação é fértil. Comparadas a atividade agrícola do país a qualidade de cada mulher é medida no conjunto dos produtos agrícolas em função da colheita anual. Nesse cultivo, mulher não é gente; é safra:


Salve a morena!
A cor morena do Brasil fagueiro
Salve o pandeiro!
Que desce o morro pra fazer marcação...
São, são, são, são
Quinhentas mil morenas!
Louras cor de laranja com mel...
Salve salve! Meu carnaval
Brasil!
Salve a lourinha!
Dos olhos verdes cor da nossa mata...
Salve a mulata!
Cor do café na nossa grande produção!...
São, são, são, são
Quinhentas mil morenas!
Louras cor de laranja com mel...
Salve salve!
Meu carnaval
Brasil!(7)




*Miscibilidade: qualidade do que tem possibilidade ou facilidade de se misturar.
** Marmita é um recipiente onde se transporta a refeição para ser comida.

ÍNDICE DAS LETRAS CITADAS

01 – Loura ou Morena – Vinícius de Moraes / Paulo e Haroldo Tapajós – 1932
02 – Quem Dá Mais – Noel Rosa – 1932
03 – Grau Dez – Ary Barroso / Lamartine Babo - 1935
04 – Linda Lourinha – João de Barro – 1934
05 – A Mulata é a Tal – João de Barro / Alberto Ribeiro – 1948
06 – Tipo Sete – Nássara / Alberto Ribeiro – 1934
07 – Hino do Carnaval Brasileiro – Lamartine Babo – 1939