quinta-feira, fevereiro 03, 2011

A mulher negra e a branca nas marchinhas de carnaval

Esta postagem está - com alguma pequenas modificações que fiz, agora, no livro, de minha autoria: "A musa sem máscara - Imagem da mulher na música popular brasileira", editora Rosa dos Tempos e Distribuidora RECORD de Serviços de Imprensa S.A
Pretendo daqui por diante expandir mais a minha análise sobre a temática abaixo já que estou screvendo nova edição revisada, ampliada e atualizada.



Louras, morenas, mulatas quem dá mais?

Uma temática muito particular entra em voga nas compo­sições de marchinhas e sambas, principalmente nos anos 40: a disputa musical, instituída por compositores/letristas, na intenção de promover qual a musa mais admirada por seus dotes físicos ou suas qualificações femininas, no conceito co­letivo do imaginário social.
Um sem-número de letras foram escritas com a intenção de acirrar a concorrência feminina pelo lado racial. Perfila­vam, desse modo, quem seria a melhor e mais interessante mu­lher, a que mais estivesse apta a satisfazer o gosto dos homens. Procuravam conjugar o amor físico (calcado na sexualidade) e o amor espiritual. Imaginavam uma beleza ideal, que reu­nisse, em seu conjunto, sensações agradáveis capazes de agu­çar a atração e a sedução de todos os homens pela mulher de cor negra ou branca, loura, morena, ruiva ou mulata.
No Brasil, essa rivalidade entre mulheres de pele branca e cabelos louros e as de pele escura e cabelos pretos foi uma herança dos portugueses, solidificada e agravada por conta de séculos de escravidão.
Conforme observa o antropólogo e sociólogo pernambu­cano Gilberto Freyre no seu livro Casa grande e senzala, ao se reportar à miscibilidade* nacional nos tempos do domínio colonial, "nenhum povo colonizador dos modernos excedeu ou sequer se igualou nesse ponto aos portugueses(...) O lon­go contato com os sarracenos deixara idealizada, entre os por­tugueses, a figura da moura encantada - tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos, envolta em misticismo sexual. Em oposição à tal lenda, acima citada, mas sem nunca alcan­çar o mesmo prestígio, desenvolveu-se a da moura torta. Nes­ta, transparecem o ciúme e a inveja sexual da mulher loura contra a de cor, e o ódio religioso dos cristãos louros contra os infiéis de pele escura. Ódio que resultaria mais tarde, em toda a Europa, na idealização do tipo louro, identificado com personagens angelicais e divinos, em detrimento do moreno, identificado com anjos maus, decaídos, malvados e traidores. (...) Pode-se afirmar que a mulher morena tem sido a preferi­da dos portugueses para o amor, pelo menos para o amor fí­sico. A moda da mulher loura, limitada aliás às classes altas, tem sido antes a repercussão de influências exteriores do que a expressão de genuíno gosto nacional: 'branca para casar, mu­lata para f..., negra para trabalhar', ditado em que se sente ao lado do convencionalismo social da superioridade da mu­lher branca e da inferioridade da preta, a preferência sexual pela mulata."
As marchas e sambas expõem, então, descaradamente a persistência da discriminação racial que se agrava quando aliada ao gênero feminino. Constantemente puseram na ordem do dia a rivali­dade racial entre pretas, brancas, morenas e mulatas, de forma bem estereotipada, eviden­ciada principalmente na década de 30 e dando prosseguimento pelas décadas de 40 em diante. Isto como conseqüência da inter-relação musical dos compositores brancos e pretos. Juntos, eles exploraram ao máximo essa antiga “rivalidade fe­minina” ainda reinante e que não passa de uma construção sócio-cultural no Brasil daquele tempo que ainda trazia bem forte o ranço da sociedade escravocrata que durou em termos legais até 13 de maio de 1888 – se é que podemos considerar a farsa jurídica da abolição da escravatura ante a promulgação da Lei Áurea. A população negra continua, de fato, explorada e oprimida por décadas e décadas seguidas à frente, durante o século 20.
Musicalmente aconteceu apenas o fato de haverem exposto a miscigenação de forma preconceituosa e discriminadora, usando a mulher como veículo eternizador dessa situação de desnivelamento de raças.
Os homens conseguiam — ao menos aparentemente — se confraternizar no mesmo espaço artístico, medindo talen­tos, mas faziam da mulher bucha de canhão nas batalhas do preconceito racial, disfarçado pelo hedonismo exagerado dos concursos de beleza.
Instaura-se, então, um leilão musical onde quem era oferecida como brinde, a ser rematado no final, era a figura considerada com mais predicados fe­mininos, em versão loura ou morena, regateada pela lei misógina de um mer­cado ultra racista e super-machista onde as preferências demandada pela mulher branca como um “bem de consumo requintado” que o homem gostaria de possuir era explicitamente mencionada, mas em função da escassez de oferta a mulher negra passava a ser a mulher atraente e sedutora, opção calcada em conceitos culturais preconceituosos como a letra da música abaixo justifica sem nenhum constrangimento:


Se por acaso, o amor me agarrar
Quero uma loura pra namorar
Corpo bem-feito, magro perfeito
E o azul do céu no olhar
Quero também que saiba dançar
Que seja clara como o luar.
Se isto se der, posso dizer
Que amo uma mulher.
Mas, se uma loura eu não encontrar
Uma morena é o tom
Uma pequena, linda morena
Meu Deus que bom!
Uma morena é o ideal
Mas lourinha não era mal
Cabelo louro vale um tesouro
É um tipo fenomenal
Cabelos negros têm seu lugar
Pele morena convida a amar
Que vou fazer?
Ah, eu não sei
Como é que vai ser
Ai, as mulheres
Que desespero de amor
É a lourinha e a moreninha
Meu Deus que horror! (1)


A mulata, como não poderia deixar de ser, era figura im­prescindível dos pregões, com todos os qualificativos e predicados identi­ficadores da "feminilidade negra" a que ela deveria fazer jus:


Quem dá mais
Por uma mulata
Que é diplomada
Em matéria de samba
E de batucada,

Com as qualidades
De moça formosa,
Fiteira, vaidosa
E muito mentirosa? (2)


Inicia-se musicalmente um concurso macabro, onde a tor­cida é incentivada a eleger qual mulher deve receber "grau dez" para assumir o título de "rainha de cabeça aos pés". Qual delas seria a mais indicada, pelos atributos físicos, para proporcio­nar prazer à maior parte dos homens? Nesse tempo os con­cursos de beleza começam a chamar atenção, com divulgação maciça nos meios de comunicação. E com o incentivo que as revistas femininas, em plena proliferação, davam às suas lei­toras, designadas como "belo sexo". No cômputo geral das letras encontradas, incontestavelmente a vitória predominan­te é da morenidade:


A vitória há de ser tua
Tua... tua...
Moreninha prosa!
Lá no céu a própria lua
A lua... a lua
Não é mais formosa!
Rainha da cabeça aos pés
Morena eu te dou grau dez!(3)

As louras ficam em desvantagem, somente porque são con­sideradas coisa rara num país de mestiços. Muito lisonjeadas em relação às outras, são fortes concorrentes ao título de rai­nha de beleza, nos escrutínios realizados durante o período carnavalesco:


Lourinha, lourinha
Dos olhos caros de cristal
Desta vez, em vez da moreninha
Serás a rainha do meu carnaval
Loura boneca
Que vens de outra terra
Que vens da Inglaterra
Que vens de Paris
Quero te dar
O meu amor mais quente
Do que sol ardente
Deste meu país

Linda lourinha
Tens os olhos tão claros
Deste azul tão raro
Como o céu de anil,
Mas tuas faces
Vão ficar morenas
Como das pequenas
Deste meu Brasil. (4)

A mulata, já nesse tempo, leva vantagem pelo "rebola­do", definido como agente provocativo e aguçador do desejo sexual masculino:


Branca é branca
Preta é preta
Mas a mulata é a tal
(É a tal)

Quando ela passa
Todo mundo grita oba
Estou aí nessa marmita**
Quando ela bole
Com os seus quadris
Eu bato palma e peço bis
Ai, mulata cor de canela
Salve, salve, salve, salve
Salve ela! (5)

Em meio a todo esse fetichismo, cada mulher se sobres­sai como a melhor, a mais bela ou a "boa", conforme a cor de sua pele. Essa era a forma de adequá-las, dentro dos pre­ceitos básicos do mercado sexual, numa sociedade que come­ça a conviver com o consumismo resultante dos valores de compra e venda, instituídos pelo regime capitalista em plena ascensão no país.
Elas não passam de artigos expostos nas prateleiras, e sua finalidade é apenas, serem adquiridas para uso e desfrute masculino. Valem o quanto medem e pesam, incluindo-se no preço o design multicor das embalagens:


O tipo louro
Vale um tesouro
Mas perto do moreno
É "café pequeno"
Enquanto eu tiver
Olhos pra enxergar
Boca pra gritar
Hei de ter opinião
Não é qualquer mulher
Que consegue dominar
Meu coração
O tipo escuro
Não dá futuro
É capital parado
Que não rende juro
O tipo claro
É muito raro
Mas vende pouco
Porque custa caro.(6)


Um detalhe singular, relacionado à temática da miscibilidade, observa-se a partir de 1937 (durante a vigência do Es­tado Novo), quando Getúlio Vargas fechou o Congresso e instalou-se ditatorialmente no poder.
Nos caminhos percorridos pela nossa música popular verifica-se uma tendência, bem nos moldes retóricos da exaltação patriótica, de um "Brasil brasileiro/terra de samba e pandeiro".
Em 1939 é lançada a música Hino do carnaval brasileiro, integrando as mulheres em geral aos outros bens de produção genuinamente nacionais. A mulher brasileira é elogiada entre as riquezas e belezas territoriais emanadas de um ecossistema onde a vegetação é fértil. Comparadas a atividade agrícola do país a qualidade de cada mulher é medida no conjunto dos produtos agrícolas em função da colheita anual. Nesse cultivo, mulher não é gente; é safra:


Salve a morena!
A cor morena do Brasil fagueiro
Salve o pandeiro!
Que desce o morro pra fazer marcação...
São, são, são, são
Quinhentas mil morenas!
Louras cor de laranja com mel...
Salve salve! Meu carnaval
Brasil!
Salve a lourinha!
Dos olhos verdes cor da nossa mata...
Salve a mulata!
Cor do café na nossa grande produção!...
São, são, são, são
Quinhentas mil morenas!
Louras cor de laranja com mel...
Salve salve!
Meu carnaval
Brasil!(7)




*Miscibilidade: qualidade do que tem possibilidade ou facilidade de se misturar.
** Marmita é um recipiente onde se transporta a refeição para ser comida.

ÍNDICE DAS LETRAS CITADAS

01 – Loura ou Morena – Vinícius de Moraes / Paulo e Haroldo Tapajós – 1932
02 – Quem Dá Mais – Noel Rosa – 1932
03 – Grau Dez – Ary Barroso / Lamartine Babo - 1935
04 – Linda Lourinha – João de Barro – 1934
05 – A Mulata é a Tal – João de Barro / Alberto Ribeiro – 1948
06 – Tipo Sete – Nássara / Alberto Ribeiro – 1934
07 – Hino do Carnaval Brasileiro – Lamartine Babo – 1939