Reportagem Completa - com fotos - no caderno VIVER - Diário de Pernambuco em
22/11/2015
A entrevista comigo está mais abaixo no final da reportagem
SOCIEDADE
Uma nota pela igualdade: como as mulheres têm usado a música
contra o machismo
Conteúdo machista e luta por
igualdade de direitos duelam espaço e atenção em letras das composições
nacionais
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Publicado
em: 22/11/2015
20:00 Atualizado em: 22/11/2015 20:56
Feito
com o
A cantora e atriz pernambucana Clarice Falcão, do Porta dos Fundos, riscou a
cara de vermelho. Com um dos principais símbolos da vaidade feminina, o batom,
convidou cerca de 60 mulheres para uma versão da cançãoSurvivor, da
Destiny’s Child, banda que revelou a declaradamente feminista Beyoncé.
Clique no ícone vermelho sobre as imagens para assistir aos clipes
"Pensamos que ia
ser bonito lidar com a contradição do batom vermelho. Tenho o direito de botar
como quiser e de não botar. Ser mulher é muito difícil. No Porta, ninguém
comenta se os meninos engordaram, estão bonitos ou feios. Com as meninas, é se
comeriam ou não, está gostosa ou não, deve estar grávida, emagreceu, deve ser
porque acabou o namoro", desabafa. A recifense alcançou 1,7 milhão de
pessoas no YouTube, recebeu elogios, mas também despertou incômodo.
"Uma boa lavagem de roupa resolveria o problema dessas malucas",
reclamou, na página do Facebook doDiario
de Pernambuco, um internauta acostumado e acalentado por
personagens como Amélia, a tal mulher de verdade exaltada por Mário Lago e
Ataulfo Alves - e já ironizada pela roqueira (e feminista) baiana Pitty na
canção Desconstruindo Amélia.
"Há músicas em que percebemos o machismo banalizado, aquele que
praticamente passa batido, está naturalizado, e muitas vezes travestido de
romantismo, mas é possível encontrar músicas que trazem afirmações de autonomia
das mulheres", avalia a jornalista recifense Isabela Senra, autora da
dissertaçãoCanções vadias: Mulheres,
identidades e música brasileira de grande circulação no rádio.
A submissão feminina está tão arraigada socialmente que até Chico Buarque,
chamado de intérprete da alma feminina, deslizou em Cotidiano ("Todo
dia ela faz tudo sempre igual"), apesar de satirizar a obediência em
Mulheres de Atenas. Defensor do respeito à mulher e ao negro, o rapper paulista
Emicida despertou indignação com Trepadeira (Dei
todo amor, tratei como flor, mas no fim era uma trepadeira). Em texto nas redes
sociais, ele negou haver machismo nos versos.
Feito
com o
Mulheres oprimidas, verbal e fisicamente, são maioria no cancioneiro, um
reflexo da realidade vivida no Congresso Federal (onde tramita projeto de lei
que dificulta o acesso ao aborto em caso de estupro), no mercado de trabalho
(homens ganham cerca de 25% a mais, de acordo com o IBGE) e nas ruas (vítimas
de abordagens invasivas, um mote para a campanha online #PrimeiroAssédio,
deflagrada para publicizar relatos de abusos).
Na vida real e nas composições, as agressões interrompem vidas, como ressaltado
no clipe Naija, da rapper
Lurdez da Luz. Quase 5 mil mulheres são assassinadas no Brasil a cada ano e 179
relatam agressões através do telefone 180 por dia. Não à toa, a luta pelos
direitos da mulher permeia a produção fonográfica e acompanha o fortalecimento
do debate. Elza Soares tenta estimular a denúncia em Maria
da Vila Matilde, faixa do primeiro disco de inéditas da carreira,
enquanto Alcione disparou "Na cara que mamãe beijou, Zé Ruela nenhum bota
a mão", no samba Maria da Penha.
Agressões e dificuldades enfrentadas cotidianamente pelas mulheres inspiram as
músicas do pernambucano Poder Feminino Crew, formado por garotas de 17 a 24
anos. "Temos amigos que passam por isso. A violência não é só física.
Nossas músicas mostram a realidade nua e crua e que não vamos ficar
caladas", garante Bel Melo, de 19 anos.
Cantoras e compositoras de todos os gêneros têm feito barulho, literalmente.
Baiana criada no Recife, Karina Buhr instiga as mulheres a não agir como
capachos em Selvática. "É
tudo tão natural pra gente nessa seara no machismo e do racismo que a gente se
assusta com um monte de coisa quando passa a prestar atenção de maneira mais
intensiva. Tem coisas totalmente absurdas em músicas antigas. Mas refletem um
tempo, as de hoje refletem outro, a gente vai evoluindo junto. Demora muito,
mas vai", acredita Karina.
No disco homônimo recém-lançado, ela subverte a idealização de homem perfeito
em Eu sou um monstro("Hoje eu não quero falar de
beleza/ Ouvir você me chamar de princesa"), estratégia já usada pela
recifense Lulina, em Meu príncipe ("Meu príncipe arruma toda a
casa/ Prepara minha comida/ Enquanto eu tô no botequim"), e por Karol
Conká, em Que delícia ("Terminou? Agora lava a
louça"). A rapper curitibana será atração do Baile da Proibida,
junto com Anitta, no dia 9 de janeiro.
REFLEXÃO
Músicas cujas letras questionam
o machismo contra a mulher na sociedade
No samba de breque, Elza interpreta uma personagem cansada dos maus tratos.
"A mulher tem que ir para a rua gritar. Tem que participar de passeatas,
tudo. O mundo está nas mãos da mulher. Nunca foi sexo frágil. Acho maravilhosa
a força feminina", defende. Ela já sofreu preconceito – "lógico"
-, mas diz ser mais fácil atualmente: "Antes, não podia denunciar. Estava
arriscado ir à polícia e ficar presa, ser chamada de louca".
Em O defensor, um homem incentiva a mulher a denunciar o
marido, do qual apanha, e largá-lo para morar com ele. Zezé di Camargo e
Luciano chamam a atenção para o crime, mas reforça a ideia de fragilidade da
mulher. Dois meses após o lançamento, Zezé, em meio às polêmicas da separação
com Zilu, disse que "toda mulher feia merece ser traída" em uma
brincadeira de mau gosto.
As irmãs Simone e Simaria (ex-Forró do Muído) descrevem um relacionamento com
um rapaz que parecia "especial", embora a família da garota sempre
tenha desconfiado dele. Lançam luz sobre a questão da violência contra as
mulheres – no caso, física e mostrada de forma explícita no clipe, visualizado
mais de 7 milhões de vezes. Ao fim, incentivam: "Não se cale. Denuncie.
Ligue 180".
A morte da funkeira Amanda Bueno, da Jaula das Gostosudas, assassinada pelo
noivo em abril, foi lembrada por MC Marcelly em Não se brinca com mulher. Na
música de clipe forte, ela critica o agressor e tenta abrir os olhos da vítima.
Desliza ao afirmar que a amiga está errada, defender que ela "não é uma
qualquer" - como se outras merecessem - e até na vingança proposta -
"te ver com outra pessoa".
Os oito versos do frevo do pernambucano Capiba cantado pelos foliões ébrios dos
carnavais desde os anos 1970 são bastante didáticos é adequados à festa. A
vanguarda da letra miúda também retrata a mudança de comportamento da mulher na
sociedade e sinaliza a inserção no mercado de trabalho, ao dizer que acabou o
tempo em que elas só espantavam galinhas e cuidavam dos filhos.
AGRESSÃO
Músicas cujo teor, mascarado
por melodias contagiantes, é considerado agressivo às mulheres
A produtora Furacão 2000 foi multada em R$ 500 mil pela Justiça Federal do Rio
Grande do Sul, por incitar a violência na música cantada por Naldinho &
Bela. "A sanção faz com que se pense duas vezes antes de cometer a
agressão. Dificilmente modifica a alma da pessoa, mas ele tende mudar o papel
social, engolir o preconceito", analisa o historiador Marcos Pires
Cordeiro, da Unesp, autor do artigo A naturalização da violência contra a
mulher na música popular.
Antes de se dedicar ao golpel, Rodolfo era explorador do duplo sentido como
compositor e vocalista do grupo de rock Raimundos e incentivou a relação com
adolescentes em Me lambe. No
início, promete respeitar a idade - Se ela der mole eu juro que eu não faço
nada/ Dá cadeia e é contra o costume - mas desiste logo na segunda estrofe.
Preso, alfineta a luta de classes: "o pai dela era doutor".
A dupla de brega-funk Metal e Cego respondeu a inquérito da Polícia Civil de
Pernambuco aberto a pedido do Ministério Público estadual. O foco era
investigar o estímulo à pedofilia e o descumprimento do Estatuto da Criança e
do Adolescente nas letras de Posição da rã e Gostou,
novinha?. Em São Paulo, MCs mirins como Pickachu e Pedrinho foram
impedidos de fazer shows devido ao teor sexual das canções.
Uma das composições mais famosas de Zeca Pagodinho, Faixa
amarela é
uma declaração de amor, mas já adverte sobre a violência que o eu-lírico pode
vir a cometer. No ano passado, Martinho da Vila fez uma alteração durante a
gravação de Sambabook: Zeca Pagodinho.
Em vez de vou lhe dar, cantou sem lhe dar. Durante o lançamento de Ser humano,
em abril, ele reclamou da violência de gênero e do feminicídio.
O problema nem é chamar a mulher de indigesta. Afinal, "chantagista",
talvez fosse mesmo. Mas entre ser desagradável e merecer um tijolo na testa há
uma distância abissal. Noel Rosa não percebeu isso, assim como nos versos
"O maior castigo que eu te dou/ É não te bater/ Pois sei que gostas de
apanhar", escritos em 1937.
ENTREVISTA // MARIA AUREA SANTA
CRUZ (autora do livro A
musa sem máscara: Imagem da mulher na música popular brasileira)
Como o machismo se manifesta na
música do início do século 20 e agora?
A música popular é um veículo muito poderoso e fala sobre o imaginário das
pessoas. Tudo que acontecia em cada década era cantado. Naquele tempo, as
mulheres não tinham espaço para fazer música, como para trabalhar, andar na
rua, eram objetos possuídos pelo homem. O machismo se manifestava de uma forma
romântica, fazendo delas santas, incorpóreas, estrelas e usando o marianismo da
igreja pra dominá-las. Hoje, não tem isso. Mas, quando são machistas, é barra
pesada, como Faixa amarela, de
Zeca Pagodinho.
O que mudou na abordagem?
Outro paradigma está sendo quebrado, porque temos feministas militantes que são
compositoras. Elas falam sobre o aborto, todo tipo de violência, modo de viver,
denunciam, reivindicam direitos. Antigamente, as mulheres falavam, mas não eram
tão fortes. As músicas de hoje vão direto na ferida, não têm censura, usam os
mesmos termos e movimentos que os homens usam para falar mal delas. E mesmo as
mulheres machistas hoje não pedem mais para apanhar.
Qual a importância de manter a
vigilância com relação às músicas que incitam a violência?
Eu não sou a favor de nenhuma censura, mas acho que a vigilância tem que ser
civil. Nós mesmas temos que vigilar, que é o que essas compositoras estão
fazendo, denunciando, respondendo com músicas. Como sou da geração da época da
ditadura, sou contra qualquer proibição. A própria sociedade está modificando e
respondendo.