sexta-feira, novembro 06, 2009

Letras Que Induziam a Violência Contra a Mulher



SÉCULO XX

De tudo que ficou gravado no intenso repertório da música popular brasileira do século 20, sem sombra de dúvida, nada há de mais terrível e execrável do que as letras que estimulavam abertamente a violência contra a mulher.
Autores, os mais conceituados, compunham canções exortando – sem dó ou piedade – o cometimento desse ato doloso executado pelo homem como se isso fosse coisa mais banal do mundo.
Durante a pesquisa que fiz para escrever o Livro "A musa sem máscara - Imagem da mulher na música popular brasileira", ao me concentrar bem detalhadamente nessa temática, verifiquei que esse tipo de assunto, quando abordado pelos letristas, fazia o maior sucesso entre o público ouvinte, independente do sexo a que pertencesse.
Basta dar uma espiada, no conjunto musical da música popular, que se destacou nas “paradas de sucesso” por todo o século passado. Encontraremos, facilmente, versos escritos com a nítida intenção de induzir os homens, em geral, a ter atitudes ameaçadoras contra toda mulher, inclusive, aquela que não fazia parte do relacionamento pessoal e social mais imediato de cada homem.
Qualquer uma que ameaçasse o poder que eles detinham na sociedade ficava a mercê de todo tipo de hostilidade, do insulto à agressão física, como se pode observar numa composição de 1920:
"ALIVIA ESTES OLHOS" ou "EU QUERIA SABER"
Samba de J. B. da Silva (Sinhô) Canta: Francisco Alves
Eu queria saber porque é
Que este homem bateu na mulher
Que mulher engraçada e adorada
Que se acostumou com a pancada!
Ai, como é bão querer
Sofrer calada, sem ninguém saber,ai!
Alivia estes olhos pra lá
Que ainda ontem eu fui me rezar
Tenho medo deste olhar
Que procura-me a vida atrasar.
Ai, como é bão querer!
Sofrer calada, sem ninguem saber, ai!

HOMEM QUE AMA BATE EM MULHER?????
QUE HORROR!!!!!!

Já chegando ao final da década de 20 , o mesmo cantor torna a gravar um samba de sua autoria em parceria com Freire Junior, que chegava a ser de um contra-senso de doer e de uma bizarrisse sem conta. Entretanto, de tanto sucesso alcançado, a música saiu gravada em dois selos diferentes. O primeiro intitulado de "Malandro" e o segundo, recebeu o título "Amor de malandro". Além de editada em disco, seu lançamento dava-se, também, no Teatro de Revista, na burleta de Luiz Iglézias que levava o mesmo título. A letra, por sua vez, dispensa maiores análises pela maneira natural com que trata o fato em si: afirmar tamanho despautério que não é nada demais homem bater em mulher. A impressão que se tem é que essa prática contava na época com a aprovação social, pois a letra ficou anos nas paradas de sucesso radofônico.

"MALANDRO" ou "AMOR DE MALANDRO"
1929
de Francisco Alves e Freire Junior
canta Francisco Alves
Vem, vem
Que eu dou tudo a você
Menos vaidade
Tenho vontade
Mais é que não pode ser.
O amor é do malandro, oh meu bem!
Melhor do que ele ninguém
Se ele te bate
É porque gosta de ti
Pois, bater-se em quem não gosta
Eu nunca ví!
MULHER GOSTA DE APANHAR????
AÍ, DIZER TAMANHO DISPARATE, JÁ É MISOGINIA DEMAIS
Pra se ter ideia da concepção coletiva machista na sociedade brasileira é perceber nos conjunto musical do seu repertório, que, não era nada demais, para um cantor extremamente famoso e admirado, interpretar músicas que deixavam entrever um enfoque extremamente machista. Ainda mais, quando chega a cantar em dueto com Célia Zenatti (atriz e cantora de revista, com quem viveu 28 anos) a marcha carnavalesca - "Que m'importa". Nessa música , a dupla exaltava a famosa prédica de que "pancada de amor não doi" e, o que é pior: insinuar, abertamente, pela voz de uma intérprete, que mulher não se importa quando as leva. Atente para os seguintes versos:
"QUE M'IMPORTA"
1931
Macha de Joubert de Carvalho
FA - Estão dizendo que você vai apanhar
CZ - Que m'importa! Que m'importa!
(...)
Cz - O amor o amor
com pancadinha tem até outro sabor ...


Todas essas composições estão claramente contextualizada à conjuntura política da época. É o caso de da música "Dá nela", lançada em 1930. Obteve o primeiro lugar num afamado concurso de música carnavalesca do então Distrito Federal. A referida temática -transcrita por inteiro logo abaixo - enfaticamente, induzia os homens, a espancarem as mulheres apenas com a alegação de que elas estavam falando demais como é de se notar seguindo a letra à risca:

"DÁ NELA"
1930
Autoria: Ary Barroso
Canta: Francisco Alves

Esta mulher
Há muito tempo me provoca
Dá nela!
Dá nela!

É perigosa
Fala mais que pata choca
Dá nela!
Dá nela!

Fala, língua de trapo
Pois da tua boca
Eu não escapo.
Agora deu pra falar abertamente
Dá nela!
Dá nela!

É intrigante
Tem veneno e mata a gente
Dá nela!
Dá nela!


A bem da verdade, o título provocativo da música – que se repetia com o mesmo refrão entre uma frase e outra – tinha uma razão de ser para os conservadores machistas das primeiras décadas do século XX.
Pois, não eram eles defensores ferrenhos de uma sociedade misógina ao extremo, carregada sobremaneira de preconceitos éticos/morais, totalmente desfavoráveis ao desejo de autonomia demonstrado pela mulher nas primeiras décadas do século 20?

E, diga-se de passagem, ainda bem que tal aspiração daquelas nossas antepassadas – ferrenhas ativistas na luta pela emancipação da mulher – não foi em vão, pois
haveremos de convir sem nem pestanejar que por certo, o vozerio das feministas (na época identificadas de sufragistas), configurou-se como um levante muito bem estruturado no que diz respeito à defesa dos direitos das mulheres.
Fato é que, naquele tempo, de tanto o movimento de mulheres botar a boca no trombone, propagando em alto e bom som, suas reivindicações para obter melhoria da qualidade de vida - a toda mulher - no campo educacional, do trabalho (quer dizer - trabalho fora das fronteiras domésticas), liberdade de expressão, posssibilidade concreta de poder ir e vir sem depender da tutela de um ou mais homens.
1º PASSO PARA CONQUISTAR CIDADANIA PLENA
A essa plataforma de luta para obter espaço próprio na esfera pública foram foram sendo incorporadas outras questões relativas a emancipação da mulher e em defesa da igualdade de direitos e deveres que lhe era negado, na relação entre os sexos, de modo que, pudesse contar como um ponto a mais a favor que lhe garantisse alçar à condição de cidadã. Assim, iam as SUFRAGISTAS, anunciando pra quem quer que fosse, suas idéias paradigmáticas onde estava incluída a defesa intransigente do voto para a mulher. Enfim, de tanto falar, falar e falar demais ”que nem pata choca", exprimindo suas razões, argumentando e reivindicando seus direitos políticos, finalmente chegaram ao que queriam.
Em 1932, ganharam o direito de votarem e serem votadas, em todo o território nacional.

Nesse mesmo ano em que as mulheres deram esse passo à frente na conquista da cidadania, a mesma temática falaz pregando a violência contra a mulher vai continuar sendo lançada e editada por inúmeras vezes, sempre caindo no gosto do público ouvinte e alcançando invariavelmente sucesso absoluto, tanto em discos como nos teatros de revista.
Numa das músicas, podemos observar na sua letra, a tentativa do autor, em reproduzir como autêntico e verídico, o chavão sádico, comumente repetido por quase todas as pessoas, de que "mulher gosta de apanhar". Quem sabe, era uma maneira capciosa dele, de tentar justificar o alto índice de agressões dolosas – sem penalidade jurídica alguma – passíveis de acontecer a toda e qualquer mulher.
A letra transcrita na íntegra, também laureada com o primeiro lugar no primeiro concurso oficial de música carnavalesca é de não se acreditar tamanhaafronta que se dirige a alguém


"MULHER DE MALANDRO"
1932
Autoria: Heitor dos Prazeres
Canta: Francisco Alves

Mulher de malandro
Sabe ser
Carinhosa de verdade
Ela vive com tanto prazer
Quanto mais apanha
A ele tem mais amizade.
(Longe dele tem saudade)
Ela briga com o malandro
Enraivecida
Manda ele andar
Ele se aborrece e desaparece
Ela tem saudade, vai procurar.
(falado - Há um ditado muito certo:
Pancada de amor não dói)
Muitas vezes ela chora
Mas não despreza o amor que tem
Sempre apanhando e se lastimando
Perto do malandro se sente bem.
(falado - Êh! meu bem
O malandro também tem seu valor).


Agora pasmem!!!!!
Essa música foi um sucesso estrondoso que ultrapassou décadas sendo executada nas rádios e em outros meios de comunicação musical. Tanto é que, foi regravada no ano de 1987 – em dueto, por Ângela Maria e Caubi Peixoto – para compor uma coletânea de 50 músicas sobre mulher consideradas as melhores do século 20. Entraram na seleção também as famosas e desvirtuadas Ai, que saudade da Amélia e Emília, enaltecidas pelo único e definitivo papel de serviçais domésticas a que estavam submetidas a desempenhar no recinto doméstico.
UM DETALHE IMPORTANTE A SE DESTACAR
O disco patrocinado pelo Banco do Brasil, por mais absurdo que possa parecer, foi em favor da “Campanha do Aleitamento Materno”.

E A PANCADARIA VIRA MODA MUSICAL
Ainda teve no referido carnaval de 1932, o samba enredo da Escola de Samba “Vai como pode”, a atual Portela, escrito e musicado para desfilar naquele ano referindo-se a mesma temáica insidiosa sobre a questão da violência contra a mulher:

"DINHEIRO NÃO HÁ"
1932
Lá vem ela chorando
O que é que ela quer
Pancada não é, eu já dei
Mulher da orgia
Quando começa a chorar
Quer dinheiro
Dinheiro não há
Carinhos eu tenho demais
Pra vender e pra dar
Pancada também
Não pode faltar
Mas dinheiro
Isso não dou a mulher
Faço descer à terra o céu
E as estrelas se ela quiser
Mas dinheiro não há...


Lamartine Babo lançou, também, em 1932, a marcha carnavalesca, onde a letra, seguia o mesmo padrão do espancamento como se fosse essa prática violenta, a coisa mais natural de se fazer à mulher. Nos vários versos, reclamavam as mudanças que estavam acontecendo com relação ao comportamento das mulheres. E, outra vez, insistia o autor, em afiançar, continuadamente, na sua música, qual deveria ser a maneira indicada para conter as mulheres. Quer dizer: quando e lasnão seguiam mais a risca, a cartilha das “boas maneiras femininas”, adotando por conta própria, um outro modo de proceder:
“SÓ DANDO UMA PEDRA NELA”

Mulher de setenta anos
Já cheia de desenganos
Que usa vinte e cinco gramas
De vestido na canela
Só dando com uma pedra nela!
Só dando com uma pedra nela!
Menina que pede esmola
Com um cofre de ferro imenso
Que pede pra Santo Onofre
Pra levar pra São Lourenço
Só dando uma pedra nela!
Só dando uma pedra nela!(...)




Nesse mesmo ano, outras músicas foram lançadas sendo bastante divulgadas, batendo na mesma tecla repulsiva de pancadaria contra a mulher, de maneira a incitar, pelo teor das letras, a violência praticada, usualmente, de vários modos, onde é possível constatar mais versos execráveis, NA VOZ DE CANTORAS:

Mulher indigesta – 1932 – Autoria – Noel Rosa - Canta Aracy de Almeida: Mas que mulher indigesta! Indigesta! Merece um tijolo na testa"(...) O que merece é entrar no açoite(...)
Mulato de qualidade – 1932– Autoria – André Filho – Canta – Carmem Miranda: Eu gosto dele / Porque ele é um mulato de qualidade / Vivo feliz, no meu canto sossegada/ Tenho amor e carinho, oi / Tenho tudo e até pancada(...)
Mas, nem pensar que tamanha insídia musical vai parar por aí. Esse tema continuará a perpassar todo o século 20, haja vista, as letras que coletei antes e depois da década de 30.


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