Esta postagem está - com alguma pequenas modificações que fiz, agora, no livro, de minha autoria: "A musa sem máscara - Imagem da mulher na música popular brasileira", editora Rosa dos Tempos e Distribuidora RECORD de Serviços de Imprensa S.A
Pretendo daqui por diante expandir mais a minha análise sobre a temática abaixo já que estou screvendo nova edição revisada, ampliada e atualizada.
Louras, morenas, mulatas quem dá mais?
Uma temática muito particular entra em voga nas composições de marchinhas e sambas, principalmente nos anos 40: a disputa musical, instituída por compositores/letristas, na intenção de promover qual a musa mais admirada por seus dotes físicos ou suas qualificações femininas, no conceito coletivo do imaginário social.
Um sem-número de letras foram escritas com a intenção de acirrar a concorrência feminina pelo lado racial. Perfilavam, desse modo, quem seria a melhor e mais interessante mulher, a que mais estivesse apta a satisfazer o gosto dos homens. Procuravam conjugar o amor físico (calcado na sexualidade) e o amor espiritual. Imaginavam uma beleza ideal, que reunisse, em seu conjunto, sensações agradáveis capazes de aguçar a atração e a sedução de todos os homens pela mulher de cor negra ou branca, loura, morena, ruiva ou mulata.
No Brasil, essa rivalidade entre mulheres de pele branca e cabelos louros e as de pele escura e cabelos pretos foi uma herança dos portugueses, solidificada e agravada por conta de séculos de escravidão.
Conforme observa o antropólogo e sociólogo pernambucano Gilberto Freyre no seu livro Casa grande e senzala, ao se reportar à miscibilidade* nacional nos tempos do domínio colonial, "nenhum povo colonizador dos modernos excedeu ou sequer se igualou nesse ponto aos portugueses(...) O longo contato com os sarracenos deixara idealizada, entre os portugueses, a figura da moura encantada - tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos, envolta em misticismo sexual. Em oposição à tal lenda, acima citada, mas sem nunca alcançar o mesmo prestígio, desenvolveu-se a da moura torta. Nesta, transparecem o ciúme e a inveja sexual da mulher loura contra a de cor, e o ódio religioso dos cristãos louros contra os infiéis de pele escura. Ódio que resultaria mais tarde, em toda a Europa, na idealização do tipo louro, identificado com personagens angelicais e divinos, em detrimento do moreno, identificado com anjos maus, decaídos, malvados e traidores. (...) Pode-se afirmar que a mulher morena tem sido a preferida dos portugueses para o amor, pelo menos para o amor físico. A moda da mulher loura, limitada aliás às classes altas, tem sido antes a repercussão de influências exteriores do que a expressão de genuíno gosto nacional: 'branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar', ditado em que se sente ao lado do convencionalismo social da superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta, a preferência sexual pela mulata."
As marchas e sambas expõem, então, descaradamente a persistência da discriminação racial que se agrava quando aliada ao gênero feminino. Constantemente puseram na ordem do dia a rivalidade racial entre pretas, brancas, morenas e mulatas, de forma bem estereotipada, evidenciada principalmente na década de 30 e dando prosseguimento pelas décadas de 40 em diante. Isto como conseqüência da inter-relação musical dos compositores brancos e pretos. Juntos, eles exploraram ao máximo essa antiga “rivalidade feminina” ainda reinante e que não passa de uma construção sócio-cultural no Brasil daquele tempo que ainda trazia bem forte o ranço da sociedade escravocrata que durou em termos legais até 13 de maio de 1888 – se é que podemos considerar a farsa jurídica da abolição da escravatura ante a promulgação da Lei Áurea. A população negra continua, de fato, explorada e oprimida por décadas e décadas seguidas à frente, durante o século 20.
Musicalmente aconteceu apenas o fato de haverem exposto a miscigenação de forma preconceituosa e discriminadora, usando a mulher como veículo eternizador dessa situação de desnivelamento de raças.
Os homens conseguiam — ao menos aparentemente — se confraternizar no mesmo espaço artístico, medindo talentos, mas faziam da mulher bucha de canhão nas batalhas do preconceito racial, disfarçado pelo hedonismo exagerado dos concursos de beleza.
Instaura-se, então, um leilão musical onde quem era oferecida como brinde, a ser rematado no final, era a figura considerada com mais predicados femininos, em versão loura ou morena, regateada pela lei misógina de um mercado ultra racista e super-machista onde as preferências demandada pela mulher branca como um “bem de consumo requintado” que o homem gostaria de possuir era explicitamente mencionada, mas em função da escassez de oferta a mulher negra passava a ser a mulher atraente e sedutora, opção calcada em conceitos culturais preconceituosos como a letra da música abaixo justifica sem nenhum constrangimento:
Se por acaso, o amor me agarrar
Quero uma loura pra namorar
Corpo bem-feito, magro perfeito
E o azul do céu no olhar
Quero também que saiba dançar
Que seja clara como o luar.
Se isto se der, posso dizer
Que amo uma mulher.
Mas, se uma loura eu não encontrar
Uma morena é o tom
Uma pequena, linda morena
Meu Deus que bom!
Uma morena é o ideal
Mas lourinha não era mal
Cabelo louro vale um tesouro
É um tipo fenomenal
Cabelos negros têm seu lugar
Pele morena convida a amar
Que vou fazer?
Ah, eu não sei
Como é que vai ser
Ai, as mulheres
Que desespero de amor
É a lourinha e a moreninha
Meu Deus que horror! (1)
A mulata, como não poderia deixar de ser, era figura imprescindível dos pregões, com todos os qualificativos e predicados identificadores da "feminilidade negra" a que ela deveria fazer jus:
Quem dá mais
Por uma mulata
Que é diplomada
Em matéria de samba
E de batucada,
Com as qualidades
De moça formosa,
Fiteira, vaidosa
E muito mentirosa? (2)
Inicia-se musicalmente um concurso macabro, onde a torcida é incentivada a eleger qual mulher deve receber "grau dez" para assumir o título de "rainha de cabeça aos pés". Qual delas seria a mais indicada, pelos atributos físicos, para proporcionar prazer à maior parte dos homens? Nesse tempo os concursos de beleza começam a chamar atenção, com divulgação maciça nos meios de comunicação. E com o incentivo que as revistas femininas, em plena proliferação, davam às suas leitoras, designadas como "belo sexo". No cômputo geral das letras encontradas, incontestavelmente a vitória predominante é da morenidade:
A vitória há de ser tua
Tua... tua...
Moreninha prosa!
Lá no céu a própria lua
A lua... a lua
Não é mais formosa!
Rainha da cabeça aos pés
Morena eu te dou grau dez!(3)
As louras ficam em desvantagem, somente porque são consideradas coisa rara num país de mestiços. Muito lisonjeadas em relação às outras, são fortes concorrentes ao título de rainha de beleza, nos escrutínios realizados durante o período carnavalesco:
Lourinha, lourinha
Dos olhos caros de cristal
Desta vez, em vez da moreninha
Serás a rainha do meu carnaval
Loura boneca
Que vens de outra terra
Que vens da Inglaterra
Que vens de Paris
Quero te dar
O meu amor mais quente
Do que sol ardente
Deste meu país
Linda lourinha
Tens os olhos tão claros
Deste azul tão raro
Como o céu de anil,
Mas tuas faces
Vão ficar morenas
Como das pequenas
Deste meu Brasil. (4)
A mulata, já nesse tempo, leva vantagem pelo "rebolado", definido como agente provocativo e aguçador do desejo sexual masculino:
Branca é branca
Preta é preta
Mas a mulata é a tal
(É a tal)
Quando ela passa
Todo mundo grita oba
Estou aí nessa marmita**
Quando ela bole
Com os seus quadris
Eu bato palma e peço bis
Ai, mulata cor de canela
Salve, salve, salve, salve
Salve ela! (5)
Em meio a todo esse fetichismo, cada mulher se sobressai como a melhor, a mais bela ou a "boa", conforme a cor de sua pele. Essa era a forma de adequá-las, dentro dos preceitos básicos do mercado sexual, numa sociedade que começa a conviver com o consumismo resultante dos valores de compra e venda, instituídos pelo regime capitalista em plena ascensão no país.
Elas não passam de artigos expostos nas prateleiras, e sua finalidade é apenas, serem adquiridas para uso e desfrute masculino. Valem o quanto medem e pesam, incluindo-se no preço o design multicor das embalagens:
O tipo louro
Vale um tesouro
Mas perto do moreno
É "café pequeno"
Enquanto eu tiver
Olhos pra enxergar
Boca pra gritar
Hei de ter opinião
Não é qualquer mulher
Que consegue dominar
Meu coração
O tipo escuro
Não dá futuro
É capital parado
Que não rende juro
O tipo claro
É muito raro
Mas vende pouco
Porque custa caro.(6)
Um detalhe singular, relacionado à temática da miscibilidade, observa-se a partir de 1937 (durante a vigência do Estado Novo), quando Getúlio Vargas fechou o Congresso e instalou-se ditatorialmente no poder.
Nos caminhos percorridos pela nossa música popular verifica-se uma tendência, bem nos moldes retóricos da exaltação patriótica, de um "Brasil brasileiro/terra de samba e pandeiro".
Em 1939 é lançada a música Hino do carnaval brasileiro, integrando as mulheres em geral aos outros bens de produção genuinamente nacionais. A mulher brasileira é elogiada entre as riquezas e belezas territoriais emanadas de um ecossistema onde a vegetação é fértil. Comparadas a atividade agrícola do país a qualidade de cada mulher é medida no conjunto dos produtos agrícolas em função da colheita anual. Nesse cultivo, mulher não é gente; é safra:
Salve a morena!
A cor morena do Brasil fagueiro
Salve o pandeiro!
Que desce o morro pra fazer marcação...
São, são, são, são
Quinhentas mil morenas!
Louras cor de laranja com mel...
Salve salve! Meu carnaval
Brasil!
Salve a lourinha!
Dos olhos verdes cor da nossa mata...
Salve a mulata!
Cor do café na nossa grande produção!...
São, são, são, são
Quinhentas mil morenas!
Louras cor de laranja com mel...
Salve salve!
Meu carnaval
Brasil!(7)
*Miscibilidade: qualidade do que tem possibilidade ou facilidade de se misturar.
** Marmita é um recipiente onde se transporta a refeição para ser comida.
ÍNDICE DAS LETRAS CITADAS
01 – Loura ou Morena – Vinícius de Moraes / Paulo e Haroldo Tapajós – 1932
02 – Quem Dá Mais – Noel Rosa – 1932
03 – Grau Dez – Ary Barroso / Lamartine Babo - 1935
04 – Linda Lourinha – João de Barro – 1934
05 – A Mulata é a Tal – João de Barro / Alberto Ribeiro – 1948
06 – Tipo Sete – Nássara / Alberto Ribeiro – 1934
07 – Hino do Carnaval Brasileiro – Lamartine Babo – 1939
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